Artistas Comprometidas
“Fragmentar Matéria” de Patrícia Correia Domingues versus “Fluxus: SCV” de Olga Noronha
Reflexão Critica · Cristina Filipe
 



Patricia Correia Domingues, “Fragmentar Matéria”, Galeria Reverso.                                           Olga Noronha, “Fluxus: SCV” Moda Lisboa


Sobre as artistas:
Patrícia Correia Domingues (Lisboa, 1986) e Olga Noronha (Porto, 1990) são duas 
jovens artistas com um percurso notável na cena da joalharia contemporânea.
Com formação e obra distintas, são diversas as disparidades que podemos confrontar entre as linguagens adoptadas por ambas, bem como, entre os dois contextos – arte e moda – onde Patrícia e Olga apresenta[ra]m trabalho respectivamente. Contudo, são alguns os denominadores comuns no seu percurso:
i. Formaram-se internacionalmente: Patrícia estudou joalharia na Escola Massana, em Barcelona (2007-09), e concluiu o mestrado (2013) no Departamento de Gemologia e Design de joalharia da Universidade de Trier, em Ider-Obstein. Olga fez o Bacharelato em Design de Joalharia na Central Saint Martins College of Art & Design (2008-11), em Londres, e o Mestrado em Design na Goldsmiths College (2011-12), também em Londres, onde, desde 2013, se encontra a fazer o Doutoramento em Design; ii. Residem no local onde fizeram e/ou estão ainda a fazer a sua formação, Ider-Obstein e Londres, respectivamente; iii. Apresenta[ra]m recentemente o seu trabalho em Lisboa; iv. E, têm uma considerável dinâmica internacional: Patrícia ganhou o prémio estudante “New Traditional Jewellery” (2012), em Amesterdão, o prémio “Talent 2014”, em Munique, e o prémio “Mari Funaki”, na Austrália, que destaca artistas emergentes. Olga está representada nas colecções de arte da Central Saint Martins College of Art e do Design Museum, em Londres, na colecção do Goldsmiths College Design Department, e o “Colar Cervical” (Joalharia Medicamente Prescrita) integra a colecção de joalharia contemporânea em exposição no recentemente inaugurado Museo del Gioiello, em Vicenza, Itália.

Sobre as obras:
Discípula de Ramon Puig Cuyas (Mataró, 1953) e de Theo Smeets (Valkenburg, 1964), dois nomes incontornáveis no ensino e na história da joalharia contemporânea internacional, Patrícia Correia Domingues inaugurou na Galeria Reverso, a convite de Paula Crespo, no passado dia 6 de Março, a sua primeira exposição individual, integrada na programação “10 anos, 10 Projectos” no âmbito da celebração do 10º aniversário da PIN. “Fragmentar Matéria” é uma mostra minimalista e rigorosa que apresenta um conjunto de peças [jóias e objectos] de formato aparentemente ordinário extraídas através de um processo extraordinário resultante de uma investigação atenta e apurada realizada durante e após o mestrado em Ider-Oberstein. O desenho expositivo, para além das peças, integra breves frases, de uma, duas e três palavras, assumidas como elementos plásticos, que conferem o exposto remetendo-nos para a poesia visual e concreta de Salette Tavares (Maputo, 1922-Lisboa, 1994) e para o sentido expresso na frase “As artes são linguagens para serem lidas”1. Fazem-nos igualmente pensar no projecto “Art is Therapy”, exposto recentemente no Rijks Museum, em Amesterdão, em que Alain de Botton (Zurique, 1969-) & John Armstrong (Glasgow, 1966-) fixaram, nas paredes, um conjunto de grandes post-its, com comentários, ao lado de várias das obras expostas, a fim de estimular o observador a reflectir sobre questões inerentes às temáticas das obras, bem como à sua própria vida, pois não devemos ficar indiferentes ao poder da palavra e ao modo como a nossa mente a interpela. As peças de Patrícia Correia Domingues, escrupulosamente dispostas de modo suspenso ou por fixação nas paredes e em vitrinas, dispensam aparentemente o corpo (no dia da inauguração, apenas duas, para além das vinte e oito em exposição, puderam ser vistas em uso – uma pela artista e outra pela galerista). A obra, na sua maioria broches, pendentes e colares, não impõe a portabilidade intrínseca. É autónoma. E, assume um pendor quase arqueológico, sugerindo uma manualidade brutalista assente tanto numa linguagem orgânica abstracta, como numa formatividade mais geométrica. Através da matéria e do gesto associado à acção que as intervenciona é herdeira da arte primitiva. Para a sua manufactura, a autora recorreu, não só, a matérias primas naturais [arkansa, aventurina verde, sodalite, lápis-lazuli, quartzo rosa], mas também, a diversas matérias do presente, nomeadamente as reconstruídas [turquesa, madeira] e a sintética [necuron] que actualizam a atenção que presta ao passado – expresso no gesto bruto associado à acção primitiva que as intervenciona.
Cada fragmento precisa de tempo de observação para que cada linha, que o desenha e forma, possa ser usufruída demoradamente, de modo, a decifrarmos o mistério que encerra. “A mão é a janela que dá para a mente”, escreveu Richard Zennet ao citar Kant no seu livro “O Artífice”. Nele, Zennet reflecte sobre a humanização da mão, sobre a importância do fazer e sobre o tempo onde assenta o processo criativo desta artista.

Pelo contrário, na colecção “Fluxus: SVC” de Olga Norinha2, apresentada no dia 13 de Março nos Paços do Concelho, na Praça do Município, em Lisboa, no contexto da última edição da Moda Lisboa (AW 2015-2016), o corpo tem uma presença imperativa. A autora apresentou a colecção em corpos transeuntes e concebeu uma performance adequada ao contexto que facilitou a compreensão e a mostra do trabalho produzido. O exímio traje concebido pela marca “saymyname”, num primeiro momento, oculta parcialmente as jóias3. Contudo, o tracejado desenhado na indumentária anuncia uma zona a ser intervencionada, qual demarcação pré-operatória que declara uma intervenção cirúrgica. Os campos assinalados foram recortados e removidos in loco4, permitindo a visualização dos fragmentos do corpo adornados com representações do seu próprio interior: órgãos e fracções do sistema circulatório em matérias plásticas coloridas e transparentes. O traje foi literalmente removido para dar protagonismo à jóia. A jóia não adorna o vestuário; incorpora-o, aderindo directamente ao corpo, é pele e traje, simultaneamente. A presença do corpo e do traje em diálogo com as peças é vital para a narrativa do projecto. A música, os corpos em trânsito, o gesto performativo do recorte do traje, em directo, intensificaram o sentido e promoveram a visualização das peças que aderem ergonomicamente às múltiplas fracções do corpo eleito.

Sobre a matéria:
Patrícia ora parte da matéria-prima, ora da matéria reconstruída e da sintética, e fragmenta-a arriscando a total perda de controlo da forma de cada lasca que se desprende da matéria bruta. Por vezes, esses fragmentos dispersos são repostos milimetricamente no lugar original e transmitem-nos a sinergia existente entre todas as partes constituintes de um todo, qual visão microscópica que permite percepcionar o que constitui a matéria. Segundo a autora, reflectem e interrogam o espaço. São divisões e uniões.
Num procedimento mais cirúrgico Olga, tal como Patrícia, disseca a matéria. Por um lado, a fraccionar o sistema circulatório que conduz o fluxo sanguíneo no corpo, por outro, a redesenhar com a tesoura a matéria dos trajes.
Conquanto difira o tempo que investem neste processo de dar forma, ambas recorrem metaforicamente ao gesto de lapidar a matéria prima e alcançam de forma distinta o mesmo ponto vertiginoso de risco.

Sobre o público, sobre o contexto e sobre o tempo:
Na inauguração de “Fragmentar Matéria”, na Galeria Reverso, o público dispôs de cerca de quatro horas para visitar a galeria. Patrícia Correia Domingues recebeu, personalizadamente os visitantes, que foram chegando de forma dispersa, e conversou sobre a obra instalada, prévia e atempadamente, na galeria. A exposição permanece ainda até ao dia 2 de Abril.
Para presenciar à apresentação “Fluxus: SCV”, de Olga Noronha, no âmbito da Moda Lisboa, o público aguardou em fila [à porta da sala dos Paços do Concelho] perto de duas horas para assistir a uma apresentação de cerca de quinze minutos. Nos bastidores, a artista colocou cada uma das peças sobre os corpos dos modelos eleitos; os assistentes intervencionaram o traje, re-desenhando a matéria in loco, em pouco mais de cinco minutos. No final, Olga surgiu veloz e silenciosa, para agradecer simbolicamente a todos os presentes.
O tempo de concepção, o tempo de realização, o tempo de apresentação, e de usufruição da obra, diferem substancialmente. O tempo é, de facto, a grande décalage neste confronto entre as duas artistas e os dois contextos em que se movem.

“Fragmentar Matéria” precisa de recolhimento, precisa de tempo, não sobrevive em quinze minutos. Cada peça em exposição exige uma observação demorada que permita percepcionar a gestação, o processo, o enigma da excelência de cada linha acidentada. A mostra numa galeria dá-lhe o tempo certo de ser fruída e atribui-lhe o estatuto de objecto de arte. No entanto, torna demasiado elevada a responsabilidade de transportar no corpo uma peça com tal carga artística e museológica, mesmo de pequena escala e facilmente portável, e corre o risco de a tornar inacessível ao público que visita a galeria.
Será que o espaço imaculado e inerte da galeria distancia a presença humana da jóia e distancia-se da proposta apresentada no portefólio e no site de Patrícia Correia Domingues, que nos mostra pessoas simples, no seu quotidiano, a usufruírem destas mesmas peças?
Se deslocássemos esta obra para a passadeira vermelha o que ganharíamos?
Público? Mercado? Mediatismo? Seria positivo mais pessoas no seu quotidiano usufruírem destas jóias, mas será esta a via? Deslocar a obra para o contexto da moda de modo a torná-la mais popular e mais mediática?
É abissal a discrepância entre a audiências da joalharia mostrada em contexto de moda e em contexto artístico. Na moda, o mediatismo e a cobertura de quinze minutos de mostra não se compara àquela que se consegue numa exposição que permanece durante cerca de quatro semanas numa galeria de arte.

“Fragmentar Matéria” sofre claramente dessa síndrome e merece maior cobertura por ser uma proposta contemporânea de excepção, antecipadamente museológica, que reúne intrinsecamente as qualidades que lhe dão esse estatuto. E, muito embora não sejam apenas os públicos que ditam a qualidade do trabalho, é importante ver esta obra disseminada.
As peças “Fluxus: SCV” embora ergonómicas e apresentadas ao público sobre o corpo, deixando claro quem é o seu destinatário, não são facilmente portáveis no quotidiano. São, na sua maioria, performativas. Resultam de um trabalho numa linha Pop, assente numa iconografia simples que estabelece um diálogo – muito embora poético e metafórico – numa linguagem acessível e identificável num primeiro olhar.
Todavia, para serem autónomas e sobreviverem fora da mise-en-scène sazonal, precisariam de mais tempo de maturação e concepção. São demasiado cinematográficas e dependem claramente de uma cenografia.
Ganham mais consistência se conhecermos a obra anterior da autora: “Joalharia Medicamente Prescrita”, “Corpus in Claustrum” e “Aurora Borealis”, uma narrativa contínua tangente a conteúdos em torno do corpo humano e do corpo espiritual, com carácter reflexivo, intrínseco a cada proposta. No entanto, tal como referi numa reflexão critica anterior sobre “Corpus in Claustrum”, “Fluxus: SCV” sofre pela demasia e pela dificuldade em manter o mesmo nível de qualidade em todas as peças constituintes de tão ambiciosa produção5. Falta tempo e sofre as consequências de uma produção sazonal acelerada em tempo limite.
Olga Noronha tem vindo a fazer um exercício ambicioso e louvável, contudo arriscado, ao testar a sua obra em dois contextos fortemente demarcados por clichés e por normas. A formação teórica enraizada nos estudos de investigação tem-na levado a experienciar a mostra do mesmo trabalho em diferentes contextos6 e a reflectir sobre a eventual contaminação e diluição entre a arte e a moda. Porém há que determinar se se tratam de ideias a consolidar e, ou reformular, ou não.
Será que “Fluxus: SCV” deverá também ser revisitado noutro lugar e por outro público? “Fluxus: SCV” merece mais atenção e maior investimento em cada detalhe, tal como “Corpus in Claustrum”, quando instalado na Igreja de S. João Novo, no Porto, após a sua apresentação na passerelle da Moda Lisboa.

Sobre o próximo futuro:
Patrícia Correia Domingues e Olga Noronha são duas artistas singulares, profundamente comprometidas com a joalharia contemporânea, cujos trabalhos reflectem uma consciência não só da história como das transformações que esta disciplina tem sofrido ao longo da contemporaneidade. A autenticidade das suas propostas reafirma o reconhecimento merecido e atesta a importância que estas duas artistas vão, com certeza, obter no próximo futuro da história da joalharia contemporânea. Os seus mais recentes projectos “Fragmentar Matéria” e “Fluxus: SCV” convocam dois campos de interesse à joalharia – o da moda e o da arte – com as suas mais-valias e as suas vulnerabilidades e sobre os quais interessa continuar a reflectir.

 

Cristina Filipe
Março 2015

 

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1. Cf. TAVARES, Salette – Poesia espacial. Lisboa: Centro de Arte Moderna, Gulbenkian, 2014. Apud TAVARES, Salette – Forma, poética, tempo. Brotéria. Lisboa. Vol. LXXXI (Jul-Ago 1965), p. 51.

2. Igualmente seleccionada nos “10 Anos, 10 Projectos” da PIN, mostrou, nesse âmbito, em Dezembro passado, o projecto “Corpus in Claustrum” na Igreja S. João Novo, no Porto.

3. Considerando a formação e o contexto da obra de Olga Noronha, bem como, a sua formação assumo que os trabalhos que produz tratam de joalharia, e reflectem sobre, no sentido contemporâneo do termo, no qual, desde 60 do sec. XX, esta terminologia amplia a sua abrangência e passa a englobar uma muito mais ampla gama de artefactos que extravasam o convencionado na etimologia do termo.

4. De realçar a importância que teve este grupo de intervenientes na performance; contudo, valeria a pena repensar o casting e a forma de apresentação, pois o modo personalizado como se apresentaram vestidos criava bastante ruído e competia – para não dizer colidia – com o corpo principal, aquele que estava a ser intervencionado. Sendo, à partida, corpos em acção integrantes da performance , o seu traje devia apresentar-se uno e neutro.

5. Na moda, existe normalmente, aliada ao designer, uma equipa de costureiros profissionais que executam as peças. Para o autor de joalharia contemporânea que entra no sistema da moda, não existe [ainda] uma equipa de técnicos profissionais especializados que acompanhem a produção deste tipo de peças, até porque os materiais e as propostas são tão díspares que dificilmente poderão ser geridos por um grupo de joalheiros especializados no sentido tradicional do termo. Portanto, têm de ser os próprios autores, com alguns assistentes, a gerir a sua produção. E é improvável conseguir produzir peças com grande qualidade técnica e estética neste contexto sem um suporte sólido por detrás, ou sem tempo.

6. Importa referir outros dois casos paradigmáticos, em Portugal, que têm trabalhado transversalmente entre a moda e a arte – Lidija Kolovrat (Zenica, 1962) e Valentim Quaresma (Lisboa, 1970). Ambos com percursos anteriores idênticos, cujo trabalho não sobreviveu apenas no contexto da moda e procurou outras locações, constata-se a mesma problemática – que Olga anuncia – da dificuldade de gestão de mundos tão díspares. O desafio transversal e a atracção pela omnipresença são bastante sedutores, mas difíceis de gerir. Moda e arte são, de facto mundos diferentes que se intersectam, por vezes, mas de difícil gestão conjunta para os artistas que se movem em ambos os campos. Se conseguirem demarcar-se em cada um, separadamente, então sim; mas, quando procuram que o mesmo produto funcione nas duas esferas, o risco é maior.

 

Links

Patricia Correia Domingues
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Olga Noronha
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