Joalharia artística contemporânea: 

Portugal, uma arte no cruzamento com a tutela do Ministério das Finanças

Ana Campos


Em Portugal, uma arte no cruzamento com a tutela do Ministério das Finanças
As Artes Plásticas, desde o início do século XX, têm vindo, progressivamente, a apoderar-se de novos meios de materialização. Mas, os materiais e as tecnologias não podem ser tidos em conta isoladamente, ou apenas como meios de expressão de dado artista. A análise de cada caso exige uma prévia abordagem do contexto em que uma obra se inscreve. Isto inclui ter em conta o que enquadra as obras, dos pontos de vista conceptual, social e histórico, cada vanguarda, cada movimento e cada artista em si mesmo.
Para ilustrar esta questão, lembramos como exemplo a Arte Povera. Esta denominação surgiu em Itália, no final da década de 1960, num momento em que a Europa e os Estados Unidos viveram momentos sócio-históricos que conduziram a atitudes artísticas radicais. Estes artistas posicionavam-se contra valores estabelecidos por instituições governamentais, pela cultura, pela indústria e mesmo perguntando-se se a arte, como expressão individual, ainda teria uma razão ética para existir. Subjacentemente, representou uma atitude de emancipação relativamente à Arte Italiana Renascentista e, também, a inscrição numa visão do mundo, revolucionária, que então se vivia e generalizava a muitos sectores.
Inúmeros outros exemplos poderiam ser lembrados para ilustrar a frase inicial deste texto. Neste caso, escolheu-se a Arte Povera pelo parentesco que apresenta, em termos de atitude irreverente, com a Nova Joalharia, de que resultou a Joalharia Artística Contemporânea, que aqui se abordam.1
A partir do século XIX, a joalharia ocidental começou a associar materiais exóticos trazidos de África e da América do Sul, considerados não preciosos mas, então, admitidos como passíveis de serem integrados na joalharia instituída. Correspondiam, ao apreço pelo mistérios de mundos exóticos. Existiram joalheiros, casos singulares, que procuraram introduzir na joalharia materiais diferentes, isto é, para lá das convenções da sua época. Um dos casos que sobressai é René Lalique que, em peças finamente trabalhadas, conjugou marfim, corno, cristal de rocha ou outras pedras semi-preciosas com prata ou ouro em peças Arte Nova, que exprimem a época em que viveu.


René Lalique | diadema orquídea | Corno, marfim, ouro, topázio | 18x16 cm | C. 1903-1904 | Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa



Se recuássemos ainda mais no tempo, bem aquém do modernismo, encontraríamos o uso dos primeiros materiais sintéticos, como o Strass (contrafacção de diamantes), o Pinchbeck (uma liga para contrafacção de ouro), de acordo com o nome dos seus inventores. No século XVIII, o gosto pela fantasia e ostentação, por pedras e galões de ouro que decoravam os vestuários feminino e masculino, levou a que, devido a razões económicas, se criassem sofisticadas jóias falsas, recorrendo a tecnologias já então existentes. Um dos exemplos deste trabalho paralelo, mas legal, é a existência de uma corporação de joaillers-faussetiers, em Paris, que trabalhava com alta qualidade técnica.2
Como salienta Bártolo, existem paralelos entre a história do corpo e a da joalharia. “A jóia e corpo tendem a partilhar o mesmo destino, tendem a ser alvo de idênticas interpretações, usos e agenciamentos sociais. Assim, não nos deve surpreender que as transformações (e as suas causas) que fazem a história contemporânea do corpo sejam, em muitos aspectos, coincidentes com as transformações que marcam a história recente da joalharia.”3



Paris, Maio 68: manifestação estudantil e cartaz da Academia de Belas Artes.


Assim sendo, para enquadrar a joalharia dos anos 1960, pensemos, por exemplo, na introdução da pílula feminina, nas transformações sociais do papel deste género, na liberdade do corpo e no modo de o vestir conduzidas por esta invenção laboratorial. Tenhamos, então, em conta o cenário da joalharia seu contemporâneo. Nas décadas de 1960/1970, nota-se, de múltiplos modos o desejo de reedificar o conceito de jóia e questionar ideias estagnadas. Demarcava-se uma vanguarda experimentalista – a Nova Joalharia – que introduziu propostas irreverentes no campo artístico, contestando tudo o que pudesse associar-se a ideais burgueses, convenções culturais ou governamentais estabelecidas e circuitos comerciais tradicionais, de modo semelhante ao que foi exposto a propósito da Arte Povera. Por outro lado, os joalheiros reportavam-se à Pré-História: “o Homem sempre sentiu necessidade de se adornar, fosse por crença ou por vaidade. O Adorno / a Jóia sempre existiram, os materiais sempre foram diversos. As assemblages, as combinações sempre foram surpreendentes.“4
A Holanda, a Inglaterra e a Alemanha foram precursoras neste domínio. Aqui, as jóias há muito tinham deixado de ser consideradas fruto de artes aprendidas nas bancas oficinais ou em escolas onde apenas se ensinavam técnicas. Emergia aquilo que se designou Studio Jewellery, ou seja, de jóias concedidas em domínio projectual e académico. As escolas e academias alargaram-se a muitos outros países Europeus, aos Estados Unidos, ao Japão e Austrália. Portugal não foi excepção, pelo que surgiu, em Lisboa, o primeiro curso de Joalharia na escola Ar.Co, Arte e Comunicação. Seguiu-se a abertura de vários outros cursos, com modelos diferentes entre si. Abriram, também, muitas galerias nestes países, divulgando, até aos dias de hoje, novas expressões artísticas que vão surgindo no âmbito do que se designa Joalharia Artística Contemporânea.


Tereza Seabra | Broken Hearts III | Ouro, Fotos Vintage, Alianças do século XIX, fio de seda, aparos e lacre | 2009


Com a Nova Joalharia, tudo obedecia a vontades de realizar contrários. Uma vez que consideravam o belo associado à estética burguesa, os joalheiros adoptavam formas que de algum modo se opusessem. Os materiais convencionais associados às jóias eram, e ainda hoje são, ouro e pedras, os materiais ditos preciosos. Então, usavam materiais pobres, como o papel, os plásticos, as madeiras, o latão, o cobre ou outros metais e, até, materiais efémeros como, por exemplo, massas alimentares, para contestar a durabilidade do ouro. Quem usasse ouro era mal visto entre os outros artistas-joalheiros. Uma vez que um material dispendioso como o ouro só permite realizar jóias pequenas, então faziam jóias enormes que abrangiam todo o corpo. Contestavam, assim, a usabilidade e a funcionalidade, outros aspectos inerentes ao uso da jóia no corpo. Eram os novos materiais usados que permitiam sobredimensionar estas jóias.5


Gijs Bakker y Emmy van Leersum | Clothing suggestions | malha sintética | 1970 [NL]


Neste processo transformativo, o recurso a múltiplos materiais, por vezes associados a pedras ou metais preciosos, para realçar afrontas, foi sido um contributo importante para exprimir um desafio social. A atitude irreverente da Nova Joalharia formou-se num mainstream, que pertence hoje à história da arte e do design de joalharia contemporâneos. Deixou rastos maioritariamente visíveis no recurso à utilização de uma diversidade de materiais e tecnologias. Efectivamente, para a Joalharia Artística Contemporânea, os materiais constituem-se como um dos meios mais relevantes para dar corpo à contaminação da joalharia por outras orientações artísticas. Fazem surgir expressões híbridas, diálogos configurativos e colocam a joalharia como uma forma de expressão artística e de experimentalismo estético. Entre estes materiais estão de volta, nestas interfaces de comunicação, aproximadamente a partir dos anos 1990, o ouro, a prata, a platina – os materiais convencionados pelo Tratado de Viena – que são abordados, tal como os outros – como meios estéticos e veículos para transmitir mensagens.
A designação joalharia passa a ser posta em causa, entre os próprios joalheiros, mas também outros artistas. Surgiu uma nova Arte Visual, como alguns pretendem? Esta hibridez coloca a joalharia artística numa posição de fronteira entre as artes plásticas e a joalharia clássica? Com a primeira, partilham meios, formas de comunicar e de se questionar a si mesmos, com a segunda, partilham técnicas e também algumas matérias (os metais convencionados como preciosos pelo Tratado de Viena). Ou será uma atitude de limite semelhante aos movimentos de emancipação das mulheres e dos gays que, por extremos que pareçam, não procuravam rompimento, mas sim aceitabilidade social?
A joalheira Cristina Filipe lembra “Also Known as Jewellery?”, uma exposição itinerante francesa promovida em 2009 pela Associação de Joalharia Contemporânea “La Garantie”, com a curadoria de Benjamin Lignel e Christian Alandete, comentando: “é uma das frases mais bem conseguidas sobre o paradigma da joalharia contemporânea e que traduz com clareza o dilema com que todos os artistas que trabalham nesta área de criação se debatem, tanto em Portugal como no resto no Mundo.” Lembra, também, a propósito de uma peça de 1991, da sua autoria: “Coisa, para se usar presa à roupa”, é “uma chapa de ferro de 4 x 4 cm, com a frase gravada “Isto é uma Jóia” dizia-nos, de um modo minimal e concreto,  que as “coisas” são jóias quando o artista decide que essas “coisas” sejam jóias.


Cristina Filipe | Coisa, para se usar presa à roupa | ferro | 1991 [PT]


Se, por um lado, a peça tentava dar resposta à contínua e recorrente questão do público sobre o que é ou não é jóia, por outro, reflectia o então emergente movimento de joalheiros contemporâneos, que proliferava desde os anos 60, por todo a Europa e América do Norte. O trabalho desenvolvido por estes artistas surpreendia pelas propostas diferentes, pelos novos territórios que conquistava, e deixava o público em geral com a eterna questão “isto é ou não é uma jóia?”.6
A propósito destas reflexões, comenta, também, Bártolo: “A exposição “When attitudes become form”, organizada em 1969 por Harald Szeemann para a Kunsthalle de Berna, ilustrava bem uma nova concepção da joalharia menos preocupada como o “objecto” do que com o “processo”, menos preocupada como a “forma” do que com a “atitude”, reflexo claro de novos diálogos entre áreas criativas (joalharia, design, escultura, pintura, performance) cujas fronteiras são esbatidas pelos agenciamentos criativos que as atravessam: da Arte Povera à Arte Conceptual, da Body Art ao Anti-Design.” Ao serem apresentadas em público, estas jóias vão, também, funcionando como argumentos contra uma concepção tradicionalista da joalharia, associada a materiais preciosos e a um conservadorismo formal e performativo. Desenvolvem novas formas de diálogo entre corpo e objecto, diálogo através do qual as posições parecem, muitas vezes, permutáveis. “Como sublinham Peter Dormer e Ralph Turner, a joalharia contemporânea é indissociável deste intenção de tornar a jóia numa interface comunicativa, performativa, dinâmica, que se dá, não apenas a ser usada (e pressupondo, em relação à joalharia tradicional novas formas de uso) mas, sobretudo, a ser sentida e pensada.”7

Entretanto, em Portugal, como são compreendidos e recebidos, os artistas-joalheiros, os autores, os designers?
Nos últimos anos, a joalharia tem-se revelado como área largamente atractiva entre as actividades criativas. Por todo o mundo cresce o número de alunos inscritos em escolas e universidades, cuja rede multiplica intercâmbios internacionais. Fortalecem-se galerias com algumas décadas, transformando-se em lugares simbólicos, já que são também pontos de encontro internacionais de joalheiros. Surgem novas galerias, proliferam as plataformas virtuais. As grandes feiras, rodeadas de exposições de artistas-joalheiros todo o mundo, transformam as cidades em lugares de confluência e revitalização anual desta larga rede de joalheiros. São momentos de apresentação de jovens talentos nas diferentes vertentes artísticas, no design e nas galerias de arte e de joalharia que aí funcionam, de ensaio perante a crítica da joalharia, de encontro ou reencontro com joalheiros de nome reconhecido, de competição entre todos para emergir. Neste panorama internacional, os joalheiros Portugueses não são excepção. Muitos nomes sobressaem, tal como a qualidade no seu conjunto. Interagem nas mesmas plataformas virtuais, mostram trabalho em galerias internacionais e as escolas incluem-se na mesma rede global.
Os artistas-joalheiros Portugueses querem importar a imagem qualificada que souberam exportar sobre si mesmos, ou seja aquela que construíram no exterior e está divulgada não apenas na Europa, mas no mundo. Querem dar-se a conhecer internamente e contribuir com a sua experiência, também neste país.
Mas, a legislação terá que acompanhar os tempos. Simultaneamente, haverá que consciencializar a indústria, o mercado e respectivos agentes económicos para a necessidade de diálogo com os artistas-joalheiros, para qualificar estes produtos criativos portugueses, contando não apenas com a primazia dos metais preciosos, mas também com as qualidades artísticas e estéticas.
Queremos ser incluídos, aceites, sendo tão legais como outros artistas e assumindo uma única diferença: entre outras, usamos matérias convencionadas pelo Tratado de Viena e regulamentadas em Portugal, visando qualificação e defesa do consumidor, questões que respeitamos.

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1    A designação Nova Joalharia, entendida como manifestação artística,  foi introduzida internacionalmente pelo livro de DORMER, Peter e TURNER, Ralph, 1995, The New Jewelry: Trends and Traditions, London, Thames and Hudson. Por Joalharia Contemporânea, entende-se a joalharia artística – também designada Joalharia de Autor - realizada, internacionalmente, aproximadamente a partir da década de 1990.
2    D’Orey, L., 1995, Cinco Séculos de Joalharia: Museu de Arte Antiga, Lisboa, Instituto Português dos Museus.
3    Bártolo, José, “Superfícies e Profundidades: Uma reflexão sobre o corpo e a jóia”, em Campos, Ana, coord., 2007, 2ndSKIN Cork Jewellery, Matosinhos, ESAD e DesignLocal.
4    FILIPE, Cristina, Revista Umbigo, Setembro, 2009.
5     BESTEN, Liesbeth den, 2006, “Contemporary Jewellery and the problem of beauty”, in Radiant, Amsterdam, Gallerie Ra.
6    FILIPE, Cristina, Revista Umbigo, Setembro, 2009.
7    BÁRTOLO, José, idem.



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