O Corpo como suporte privilegiado de Ornamento
Artigo de Isa Duarte Ribeiro | Membro PIN
Revista Estúdio, nº9 da FBA-UL


O Corpo como suporte privilegiado de Ornamento

Resumo: Através da obra de várias artistas, este artigo propõe-se demonstrar como o corpo tem sido sempre o suporte privilegiado de ornamento e como as práticas de modificação corporal, que existem há milhares de anos, foram retomadas na joalharia contemporânea, mas com novas abordagens, que levaram à redefinição do conceito de joalharia e a um esbater de fronteiras através do encurtamento do campo da não-joalharia.

Palavras chave: corpo, joalharia efémera, marca,


Introdução
O corpo é um espaço territorial que tem sido alvo de decorações diferentes segundo os países e as épocas. Corpo escrito, tatuado, perfurado, através do qual o indivíduo se relaciona e interage com o mundo e com o outro.

Em certos países, regiões ou sociedades a lei do grupo podia ser figurada nos corpos narrando ritos de passagem. As práticas de modificação corporal existem há milhares de anos, como as tatuagens na Oceânia, as perfurações na Ásia e na América e a escarificação em África.

O Ocidente também criou as suas marcas duma forma mais simples quer como identificação de género ou de ritual de passagem como a perfuração das orelhas nas raparigas logo à nascença, o uso de anéis de noivado e de casamento, ou duma forma mais dramática, como identidade de grupo de exclusão da sociedade através da marcação no pulso dos judeus do seu número nos campos de concentração, ou das tatuagens de guerra no braço dos soldados, ou em metade da cara nos Comandos, ou ainda nas prisões.

Quer sejam objetos, quer sejam marcas sobre, sob ou dentro da pele, todas se podem catalogar como ornamento do corpo.

 

Redefinição de ornamento
A joalharia contemporânea tem pegado nessas práticas e criado novas abordagens. Podemos encontrar a ideia de tatuagem nas jóias anti-bacterianas de Inês Nunes.


Figura 1 | Inês Nunes, Penso, adesivo compressa com película de prata e estampagem, 2008 | Foto: C. B. Aragão |  Fonte: cedida pela artista.



Esta peça que consiste num adesivo cirúrgico onde foi estampada uma jóia tradicional do século XVIII, para além de conter a ideia de perversão de tatuagem, ao deixar de ser subcutânea para ser aplicada sobre a pele e por não ser fixa, visto que é uma jóia de pôr e tirar está liberta do carácter permanente, contem também a perversão do conceito de jóia, de algo valioso, dado que o seu custo se torna acessível a qualquer pessoa.

Antigamente um ornamento era criado para estabelecer uma ligação direta com o corpo que a portava. Apesar de qualquer peça de joalharia, tal como qualquer outra peça de arte, estar sempre investida dum significado mesmo para além da intenção do artista, a jóia só atingia o seu significado pleno quando era usado. Presentemente a  ideia de jóia alargou-se de tal maneira que pode representar um desafio para o seu portador, podendo mesmo não ser portável e ser mais importante o conceito político e social que ela contem.

Inspirada pela joalharia inovadora da década de 1970, Tiffany Parbs dedica-se ao espaço íntimo e preocupa-se especialmente com as características e as marcas que o corpo adquire ao longo do tempo. Com o seu trabalho pretende ampliar o conceito de joalharia, estender o campo do espaço público e debruçar-se sobre o espaço íntimo. Fascina-a a relação do corpo com o ornamento e as marcas que o corpo adquire com o tempo.

Desafiando e alargando a definição de joalharia, Parbs desenvolve uma investigação continua sobre as marcas deixadas pelas jóias no corpo, depois do seu uso, criando assim a joalharia efémera. Para demonstrar como a superfície da pele pode ser manipulada, Parbs selecionou uma série de palavras como etch, “itch”, “bruise”, “pucker”, “clamp”, “restrict”, “burn” e “cut” e começou a criar jóias que infligissem efeitos diferentes e transitórios no portador.



Figura 2 e 3 | Tiffany Parbs, etched, 2004 |  Pele, impressão digital 33 x 47 x 4 cm |  Foto: Greg Harris | Fonte: http://klimt02.net/jewellers/tiffany-parbs

 

Criou carimbos para imprimir a palavra “etch” (gravar) sobre a pele, enquanto que uma erupção temporária resulta da aplicação do carimbo Rash (erupção).


Figura 4 | Tiffany Parbs, Rash, 2004 | Pele, impressão digital, dimensões variáveis | Foto: Greg Harris | Fonte: http://klimt02.net/jewellers/tiffany-parbs

 

Do emprego das Abash, argolas de metal com palavras em alto relevo, resultam contusões e o Blister Ring, causa literalmente uma bolha em forma de anel, a qual resulta duma queimadura.


Figura 5 | Tiffany Parbs, bash Knucledusters | Prata, ptine, 9x1,2x3,8 cm, 2005 | Foto: Terence Bogue |
Fonte: http://blog.goo.ne.jp/pointdpo/e/ab48f5b370879113ad1a097d947cddd2


Figura 6 | Tiffany Parbs, blister-ring, 2005 | Blister, pele, impressão digital, 33 x 47 x 3.5 cm | Foto: Terence Bogue | Fonte: http://klimt02.net/jewellers/tiffany-parbs

 

Esta utilização da pele como um envolvente complexo de tempo e espaço é ainda reiterada na obra  em que tem a palavra "RAW" foi queimada na região delicada do decote. A artista apropria-se do corpo, como se fosse a superfície plana duma tela, usando a pele como uma película fotográfica e expondo-a deliberadamente a manchar ao sol. Aqui o ornamento é formado a partir da matéria biológica da própria pele.


Figura 7 | Tiffany Parbs, Bake, 2008 | Queimadura solar, pele, impressão digital, 33 x 47 x 3.5 cm | Foto:Terence Bogue | 
Fonte: http://klimt02.net/jewellers/tiffany-parbs

 

Também nesta linha temos o trabalho de Madeleine Furness, cuja joalharia se inspira nas marcas de colares, anéis, brincos ou zippers, deixadas na pele de pessoas vítimas de relâmpagos. A artista colecionou documentos destes acontecimentos e conseguiu compilar um enorme arquivo fotográfiaco deste fenómeno. Também colecionou uma série de fios, pendentes e argolas de brincos em segunda mão, que poderiam ser uma ameaça em potência para o portador que fosse atingido por um relâmpago, tornando-os inofencivos porque os cobriu com uma película de borracha sintética. Esta ideia representa a preversão da ideia de amuleto, ou ornamento curativo ou de proteção, visto que estas peças traziam malefícios a quem as usava durante uma trovoada. Furness faz a associação das fotografias com as peças de joalharia antigas que expõe dentro dum estojo onde mandou gravar um aviso de comportamento que alerta as pessoas para retirarem todos os objetos de metal em caso de tempestade com relâmpagos.



Figura 8 | Madeleine Furness, Lightning Safe, pendente de colar e estojo | Prata, plastificação em borracha sintética, caixa, forro, gravação |
Caixa: 20x20x20 cm, 2004 | Foto: R.Turner | Fonte: http://blog.goo.ne.jp/pointdpo/e/ab48f5b370879113ad1a097d947cddd2

 

Para além desta série de joalharia, Lightning Safe, Madeleine também faz fotografias das marcas deixadas pela roupa na pele, marcas de zippers, ou marca das ilhós dos ténis – série Lightning injury.


Figura 9 | Madeleine Furness, Lightning injury, colar, fotografia a cor emoldurada | Moldura: alumínio, 41x31 cm, 2002 | Foto: R.Turner | 
Fonte: http://www.onbord.com/MadeleineFurness/furness.html

 

Também duma forma conceptual e utilizando a fotografia como mediação, Tiffany Parbs tenta anular os efeitos do tempo sobre a pele. Por isso, a cirurgia estética também tem constituído motivo de trabalho para Parbs. Ela explora a procura de identidade das pessoas através de jóias. O seu trabalho problematiza os processos cirúrgicos que pretendem apagar vestígios dermatológicos do tempo. Como suporte usa o seu próprio corpo para alargar os limites do que entendemos como jóias, bem como os de pele. Para além das nódoas negras, queimaduras e cicatrizes, inflige também alfinetadas na pele ao aplicar uma série de pequenos pinos de aço inoxidável na linha da periferia do olho e da boca, recordando as linhas de corte preparatórias do cirurgião.



Figura 10 e 11 | Tiffany Parbs, cosmetic, 2006 | Pinos em aço inoxidável, impressões digitais, 33 x 47 x 3.5 cm | Foto: Terence Bogue | 
Fonte: http://klimt02.net/jewellers/tiffany-parbs

 

Ao problematizar os limites do corpo e questionar o uso de instrumentos cirúrgicos para o embelezamento do corpo, ela inverte a ideia de beleza, pois cria instrumentos que desfeiam o seu portador.


Figura 12 | Tiffany Parbs, Clamp, 2008 | Prata fina, elástico, impressão digital, 33 x 47 x 3.5 cm | Foto: Terence Bogue |
Fonte: http://klimt02.net/jewellers/tiffany-parbs

 

Este questionamento é feito também através de extensões de cabelo que ela coloca nas pálpebras, como se fossem as pestanas, criando, ao mesmo tempo, uma ambiguidade entre o cabelo e as pestanas.



Figura 13 | Tiffany Parbs, extension, 2008 | Cabelo, cabelo, impressão digital, 33 x 47 x 3.5 cm | Foto: Terence Bogue |
Fonte: http://klimt02.net/jewellers/tiffany-parbs

 

Outra artista, Teresa Milheiro, explora duma forma acutilante a obsessão com a imagem física, focando a crescente predileção generalizada pela juventude e pela beleza. Teresa procura destacar duma maneira original, a situação entre a arte, a moda, a política e a ciência.

Embora a sua joalharia, à primeira vista, possa parecer um ornamento de joalharia tradicional, ela encerra sempre uma crítica à socieddade. A actual mania doentia de manter a juventude atrvés de injeções de botox ou de cirugias, foi motivo para a sua peça Be Botox Be Fucking Beautiful. Esta peça é um kit de botox que se pendura ao pescoço para que se possa combater as rugas em qualquer lugar e a qualquer hora.


Figura 14 | Teresa Milheiro, Be Botox Be Fucking Beautiful | Colar, prata oxidada, seringa antiga, 2005 | Foto: Luís Pais

 

Num mundo onde se dá tanta importância à perfeição do corpo, este colar frio e pesado, quase ameaçador porque lembra um instrumento de tortura em miniatura, torna-se um objeto perturbador para quem o use, contrastando com a mensagem inscrita nele.

Noutra peça, Milheiro ironiza sobre o uso quase doentio dos aparelhos para endireitar os dentes, combinando materiais pouco ortodoxos na joalharia atual, mas cheios de significado, que apesar de terem uma forma agressiva são de enorme beleza.


Figura 15 | Teresa Milheiro, The Aunt’s Cow Wears Braces | Colar, prata oxidada, dentes de vaca, aço inoxidável, aparelho ortodôntico, 2005 | Foto: Luís Pais.

 

Conclusão
O corpo sempre foi um suporte e veículo de circulação de grafias, um espaço de partilha, um livro aberto. Levando até ao outro mensagens codificadas que pressupõem uma iniciação à leitura do discurso simbólico introduzido na carne através de inscrições, incisões ou modificações corporais.

O avanço tecnológico tem feito evoluir todas as práticas de modificação corporal quer pela utilização de novos instrumentos e materiais, quer pela incorporação de novos objectos. E, sendo o corpo o suporte privilegiado do ornamento, a joalharia contemporânea tornou-se um campo estudo e de aplicação de novos conceitos.

A década de 1970 funcionou como um laboratório de experimentalismo e de vanguarda no contexto artístico contaminando também a prática da joalharia. Casando a joalharia conceptual com a fotografia como meio intermediário de registo, as fronteiras entre o campo da joalharia e da não-joalharia foram-se diluindo. O campo da joalharia contemporânea está cada vez mais aberto, multiplicando-se em diversas direções e desenvolvendo um diálogo entre teoria e técnica que tem ajudado a ampliar o nosso relacionamento com a pele de nosso próprio corpo, o que nos tem proporcionado um grande entendimento dos valores pessoais e sociais.

 
Referências bibliográficas
AAVV, (2006) New Directions in Jewellery II, London, Black dog publishing. ISBN 10: 1904772552. ISBN 13: 9781904772552.
Abellón, Miquel, 2010) Dreaming Jewelry, Instituto Monsa de Ediciones. ISBN 978-84-96823-17-4. DL: B-11263-2010

 

 

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