A Memória de um Sitío versus Mapear um Percurso.
As jóias de Laura Rose

Exposição Bolseiros e Finalistas do Ar.Co • Pavilhão Preto • Museu da Cidade • Abril/Maio 2013
Reflexão crítica Cristina Filipe • Junho 2013




. . .hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o divido entre os autores vários cuja obra tenho sido o executor.  Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.

Fernando Pessoa

 

“Polida” o trabalho recente que Laura Rose1 desenvolveu, ao longo do seu terceiro e último ano do Plano de Estudos Básicos do curso de joalharia do Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, é o resultado de uma reflexão que partiu do desafio de traduzir, sob a forma de um mapa, o percurso dos três anos de estudos sobre joalharia.  

Laura foi convidada a traçar o percurso  desde a primeira à ultima peça que concebeu no curso de joalharia e que, durante o processo de visualização dessa trajetória, vivenciasse três fases correspondentes a um momento no passado, no presente e no futuro, respectivamente.

Em cada um destes três momentos,  Laura elegeu e encarnou um alter-ego, um heterónimo que assumiu a autoria do trabalho que foi desenvolvendo em cada fase .

O projecto lançado procurou assim distanciar e descomprometer a verdadeira a Laura da autoria do seu próprio trabalho, e abrir a possibilidade de deter outras identidades que, por sua vez, passariam a ser elas próprias as autoras das obras que concebeu.

Na contemporaneidade discute-se bastante a problemática da transdisciplinaridade da joalharia,  a sua abrangência disciplinar, as múltiplas formas que pode tomar e o absoluto descomprometimento a uma forma, matéria ou escala específica. Trabalha-se sobre a questão da joalharia sem no entanto precisarmos de fazer jóias do ponto de vista formal convencionado.

Partindo deste estado o projecto lançado pretendeu estimular o aluno a pensar e conceber a jóia a partir do pressuposto que não é um joalheiro.

Laura  no passado – foi  poeta, natural da Eslovénia, e no momento que realizou o trabalho tinha cerca de 30 anos; no presente  – era uma bibliotecária / arquivista Uruguaiana, com 35 anos e residia num barco; no Futuro – elegeu ser um chefe índio.

Estas três realidades distintas, desprendidas do seu próprio ser, conduziram Laura àquela que foi a sua verdadeira descoberta de si própria e do sentido que a joalharia tinha na sua vida presente.



O Presente

Quando no momento “Presente” Laura escreveu:

...this is my present, I don´t know where these objects have been, but I know that they have a long past. They once had a function. What were they? Try not to think about that. This collection of stones and objects also serves as a tool.  They are all transportable either in a cloth case or in a necklace.  They provide me with endless possibilities...




Laura Rose, 2012, Work in Progress. Presente. Objectos Encontrados. Foto Laura Rose.


 

Confirmou que a consciência de ser uma bibliotecária arquivista facultou-lhe a possibilidade de encontrar sentido a um “acervo” de resíduos urbanos recuperados na margem do rio Tejo, na “praia” de Algés, junto a Lisboa.
Laura reuniu cerca de trezentos itens desprovidos de qualquer valor material, mas carregados de narrativas de vida diferenciadas que se complementavam entre si. Todo o processo de recolha e catalogação foi essencial para a sua compreensão plástica e para o discernimento sobre a forma  como estes objectos poderiam, a partir daquele momento, serem categorizados como “jóias”.

Jóias porque eram sedutoras e belas?
Jóias porque tinham o singular carácter amulético do object trouvé?
Jóias pela sua escala e porque eram passíveis de ser transportados pelo homem?

Não serão só meros objectos?
Qual a obrigatoriedade de serem olhadas, usadas e transportadas como jóias?
A discussão em torno desta reflexão foi intensa e plena de ambivalências e paradoxos.

Why not jewellery? Título claro, directo e pragmático de uma das últimas exposições individuais de Onno Boekhoudt alerta-nos exactamente para esse questão. Se somos artistas joalheiros porque precisamos de dar outros nomes às peças que realizamos, mesmo que elas não pareçam jóias. Não será essa a grande questão da arte contemporanea? As “coisas” puderem parecer o que não são? Não acreditarmos apenas nos nossos olhos? Não foi isso que Duchamp nos ensinou com a sua “Fonte”?

 
O Passado

Após a elaboração do seu mapa, durante o momento “Passado” Laura escreveu ...o meu mapa é uma colecção de jóias que representam pessoas, eventos e projectos importantes para mim no meu percurso na joalharia. As imagens das peças têm no verso uma palavra que associo a uma pessoa, evento ou projecto. As imagens e as palavras foram imprimidos sobre tecido e agora são jóias que eu posso usar...


Laura Rose, 2012, Work in Progress. Passado. Estudo para um Mapa. Foto Laura Rose.


Importa sublinhar que, no “Passado”, quando construiu o mapa, a Laura era poeta e a forma como o construiu traduz a qualidade inerente ao seu carácter. Embora consciente do seu percurso, enquanto Laura estudante de joalharia, o seu discurso assumiu a voz de Rose a poeta eslovaca de 30 anos. E, se por um lado Laura versus Rose criou trinta e cinco peças que constituem um poema concreto que nos fala das suas vivências e referencias, por outro, Rose versus Laura descodificou a memória intrínseca ao seu ser e à sua formação e subsidiou a cada item a possibilidade de  também ser uma jóia - não sendo no entanto uma jóia -  sendo um mapa sem ser um mapa.

Deleuze e Guatari, na citação abaixo, ajudam-nos a compreender esta problemática e conferem a importância de termos partido da ideia e forma de mapa como inicio desta trajectória e introspecção sugerida aos alunos que completavam o Plano de Estudos Básico dos seus estudos sobre joalharia no Ar.Co:

...what distinguishes the map from the tracing is that it is entirely oriented toward an experimentation in contact with the real. The map does not reproduce an unconscious closed in upon itself; it constructs the unconscious. It fosters connections between fields, the removal of blockages on bodies without organs, the maximum opening of bodies without organs onto a plane of consistency. It is itself a part of the rhizome. The map is open and connectable in all of its dimensions; it is detachable, reversible, susceptible to constant modification. It can be torn, reversed, adapted to any kind of mounting, reworked by an individual, group, or social formation. It can be drawn on a wall, conceived of as a work of art, constructed as a political action or as a meditation. Perhaps one of the most important characteristics of the rhizome is that it always has multiple entryways; in this sense, the burrow is an animal rhizome, and sometimes maintains a clear distinction between the line of flight as passageway and storage or living strata...   2

 

O Futuro

Quanto ao momento “Futuro”, em que Laura elegeu um chefe índio de uma tribo como seu alter ego, transporta-nos metaforicamente para a base essencial da história do adorno e encerra a sua reflexão com o confronto entre a jóia – enquanto objecto encontrado, desprovido de qualquer sentido e mística – cuja a história deverá ser ditada pela própria experiencia enquanto autora criadora, e a jóia – enquanto símbolo superior da tribo – que adquire o estatuto de excelência correspondente àquela que é a sua função original e intrínseca.


Laura Rose, 2012, Work in Progress. Futuro. Estudos de uma jóia para um chefe Indio. Foto Laura Rose.



“Polida” o título do resultado final deste estudo/projecto assume a forma de uma instalação composta por  trinta e cinco conjuntos realizados a partir da catalogação do acervo encontrado na praia de Algés. Cada conjunto  remete-nos para um livro que nos proporciona a leitura de múltiplas memórias meticulosamente arquivadas e destinadas a um corpo que, sem saber sabendo, poderá não só o ler como também o transportar ao pescoço. Os dezasseis colares, parte integrante desta instalação, tanto poderão estar camuflados, enquanto parte integrante do “livro”,  como surgirem expostos em linha, suspensos numa parede e, mesmo assim, não apelam ao seu uso, nem transparecem de um modo claro,  a sua intrínseca função.

“Polida” reflecte e questiona a transversalidade da jóia e a ambiguidade inerente a este tipo de objectos.  



Laura Rose, 2013, "Polida" , Instalação Exposição Bolseiros e Finalistas, Ar.Co, Pavilhão Preto, Museu da Cidade. Foto Cristina Filipe.


Laura Rose, 2013, "Polida" , Instalação Exposição Bolseiros e Finalistas, Ar.Co, Pavilhão Preto, Museu da Cidade. Foto Cristina Filipe.



Laura Rose, 2012, "Polida" (detalhe), Paula Crespo com Colar. Foto Cristina Filipe.

 


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1. Laura Rose nasceu nos EUA em 1982.  Em 2008 transferiu-se para Lisboa e iniciou os seus estudos de joalharia no Ar.Co em 2009.
2. DELEUZE Gilles, GUATARRI, A Thousand Plateaus, Minneanapolis: University of Minnesota, Press, 1987, p.12.

 

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