Expo La Frontera
Reflexão crítica, Ana Campos

Joias de fronteira

Em muitos dos países da América Latina vive-se o sonho de atravessar a fronteira para os Estados Unidos, na ilusão de viver o sonho americano. No México, país vizinho, será talvez mais forte esse desejo. Muitas pessoas atravessam a fronteira clandestinamente com custos dolorosos de toda a espécie, tal como se fazia em Portugal nos tempos do fascismo, quando muitos partiam a salto para outros países Europeus, levados por passadores, como então se dizia. Emigrando, persegue-se sempre o sonho de uma nova vida. A fronteira entre o México e os Estados Unidos é um palco múltiplo e complexo, provoca encontros e desencontros, sonhos, desejos e negociações. Cruzam-se, nesta linha convencionada, contrabando, migração, tráfego de drogas e de armas, dinheiro, famílias, culturas, mortes, vidas. Como diria o poeta mexicano Octavio Paz, as fronteiras separam e unem. São um lugar relacional, ainda que passageiro.

A exposição La Frontera, cuja comissária é a joalheira Lorena Lazard, refere estes temas, assim como passagens de outras fronteiras, através de joias contemporâneas. Inaugurou em Junho de 2013 no Museu Franz Mayer, cidade do México. Lazard contou com a colaboração Mike Holms e Elizabeth Shypertt, fundadores da Galería Velvet Da Vinci em São Francisco. Esta exposição conta com o grande impacto de 150 peças de 90 artistas da Europa, Estados Unidos e América Latina. Vai viajar, entre outros lugares, para esta galeria, levando consigo muitas histórias pessoais dos participantes.

Lazard oferece-nos a oportunidade de pensar filosoficamente o conceito de fronteira, através desta exposição cuja perspectiva é tão criativa como atual, porque inscreve a vida e o modo como nela participamos como sujeitos conscientes. Eugénio Trías tem razão quando diz que o limite documenta sempre algo que falta, mas tem por referencia um algo que o transcende. Mas, ainda que seja apelativa a noção de “razão fronteiriça” que nos propõe, não é tanto a sua aposta que aqui me interessa, já que se ocupa sobretudo de resgatar a razão iluminista do seu pedestal absoluto e situá-la numa fronteira de “experiência de religação com o mistério.”[1] Arthur Danto refere frequentemente a palavra fronteira, embora não se preocupe em definir este conceito. No entanto, se esta joalharia na fronteira – ou de fronteira, como prefiro – é arte, interessa mais ter em conta o que nos diz Danto, quando aborda a fronteira enquanto ruptura de distâncias entre a arte e a vida.

Danto lembra que a superação das fronteiras, na arte, coincide com a de vários campos sociais, no início dos anos sessenta. Dos Estados Unidos, recorda o Verão da Liberdade, em 1964, que representou um esforço coletivo para a igualdade dos negros no sul, o feminismo radical que surge a partir de 1968 e a resistência estudantil que rompe fronteiras em Stonewall, Greenwich Village. Da Europa, poderemos nós lembrar Maio de 1968, já que teve a mesma natureza. Também podemos referir uma joalharia que, na mesma época também superou fronteiras, no sentido dantiano. Num pequeno livro intitulado A distância entre a arte e a vida, que parece ser um bom resumo de Transfiguração do lugar comum, Danto dedica-se a justificar a superação dessa distância, portanto, a ruptura de fronteiras entre arte e vida. Dada a sua vertente historicista, desenvolve esse texto como uma história das fronteiras, tal como a história da liberdade em Hegel. Descreve o modernismo como um tempo de muitas fronteiras. Como sempre, ataca Greenberg porque prolongou esse modo de pensar, ao  defender uma balcanização da arte e, como se quisesse fazer uma limpeza étnica, introduziu, num sentido purista, uma fronteira entre a pintura e a escultura.

No entanto, já Duchamp tinha superado muitas fronteiras, entre outras, a da arte e dos objetos quotidianos. Nos anos sessenta “a fronteira está em todos lados, não há  limites.” Parece que se eliminaram diferenças entre aparência e realidade, entre arte e vida, cuja distancia é praticamente invisível. Os artista Pop, o grupo Fluxus e os minimalistas parecem ter rompido todas as fronteiras possíveis com a vida. A arte não parece arte. Os Pop também dissolveram fronteiras com a arte popular. O minimalismo rompeu a fronteiras entre arte e objetos industriais. John Cage dissolveu a fronteiras entre música e ruído quando, na pausa que provocou numa música, entraram os ruídos naturais da vida. Os expectadores tossem, conversam e ouvem-se sons exteriores.

Nesta história das fronteiras, Danto volta a perguntar “onde está a diferença?” De facto, é por esta pergunta que começa. Onde estão as fronteiras entre arte e coisas, entre arte e vida? O artista não necessita de destrezas, em arte a diferencia já não têm que ser estética, como defendia Duchamp, e o músico já não necessita de virtuosismo. Sublinha então, que “as diferenças existem, mas não têm lugar na experiência.” Também não são visíveis. Essa constatação vai levá-lo às tarefas filosóficas de pensar a arte como paradigma sem fronteiras e de construir a sua teoria interpretativa. No entanto, afirma, antes de mais que "o problema do que é a arte não é muito diferente do problema do mundo externo, ou o problema do ceticismo, ou o problema da ação voluntária ou da causalidade." Se no início da década de sessenta foram quebrados muitas fronteiras – o que também levou a acreditar que tudo é arte, através de um pluralismo extremista – por outro lado, o mundo também se foi tornando gradualmente mais complexo. Estes constatações, levam Danto a perguntar-se se todos os alunos que frequentam as escolas de arte vão ser artistas? Poderemos igualmente perguntar-nos: todos os alunos que frequentam as escolas de joalharia vão ser artistas? Dento volta a defender, como em Artworld: "uma obra tem que ser sobre algo, representar algo, ter um significado incorporado." Para entender uma obra, precisamos compreender o seu significado. Esta é uma tarefa interpretativa que Danto atribui ao mundo da arte, como mundo teórico. Se na década de sessenta a arte tratava de questões do mundo de então – tais como latas de sopas Campbell, de banda desenhada, de vestuário, de conforto, enfim, do que então dava prazer ou desagradava aos corpos – a arte do presente trata de outros assuntos. Os artistas estão agora interessados ​​no mundo em que hoje vivem, por razões contextuais. Às vezes, a arte tem-se concentrado no feminismo, outras na guerra, no consumo e, acrescento, de fronteiras. Assim, “a arte continua a tentar agir nas nossas consciências.”[2]

A arte não pretende mudar o mundo, mas fornece-nos experiencias que nos dão a pensar sobre o mundo e a vida. Talvez mudemos as nossas consciências sobre realidades da vida. É precisamente o que encontramos, com agradável surpresa, na exposição La Frontera. Fala-nos de realidades da fronteira México / Estados Unidos e de muitas outras fronteiras que cada joalheiro terá em mente. Mas teríamos que perguntar-nos de novo: o que significa cada obra? Que intenções criativas e comunicativas, associadas a sensibilidade, tem cada joalheiro participante? Para que sejam arte, cumprirão a três condições que Danto já referia em Artworld. É tentador seguir este caminho, mas haveria que ouvir cada joalheiro, como diria Danto. Além disto, prefiro referir outra fronteira e justificar o título joias de fronteira.

De facto, a arte do presente já não está interessada em romper mais fronteiras, como refere Danto a propósito dos anos sessenta. A arte conquista a sua autonomia na fronteira, ou seja na própria intersecção de campos. A joalharia contemporânea tem esta mesma natureza, razão porque é híbrida. Constituindo una rede global, os joalheiros contemporâneos assumem-se como artesãos. Esta atitude simbólica significa preservação de uma memória, pois enquanto oficio um joalheiro era artesão, desde a antiguidade. Mas, isto não significa que pretendam dar continuidade a essa tradição. Pelo contrário, rompem com autoconsciência o velho sistema das artes e transfiguram o artesanato que, como diria Danto, sai do seu lugar de origem para ser visto como arte. Esta joalharia procedeu a uma rotação rumo à arte, na medida em que se soltou de velhas regras do ofício, criando um novo paradigma com outras tradições. Recorre a materiais metaforizados que comunicam simbolicamente, num plano híbrido com atitudes e intenções artísticas. Através desta hibridez, conquista a sua autonomia na fronteira, desafia tanto a arte como o velho artesanato. São portanto joias de fronteira, estão intencionalmente neste lugar híbrido. Acresce que, nesta hibridez, a joalharia contemporânea poderá ser portátil, mas já não é um adorno. Não é feita para adornar um corpo. É crítica e reflexiva, pensa o mundo, a vida e a própria joalharia, propondo-nos esta mesma experiencia. Como diria Gerard Vilar, é uma arte de significados.



 

Participantes:
Rameen Ahmed, Mayte Amezcua, Eliana Arenas, William Austin III, Iacov Azubel, Maria Fernanda Barba, Brooke Battles, Ela Bauer, Victor Beckmann, Kristin Beeler, Aline Berdichevsky, Jesse Bert, Elvira Bessudo, Raquel Bessudo, Linnèa Blakèus & David Alexander Calder, Arturo Borrego, Sandra Bostock , Alejandra Bremer, Gabriela Campo, Jorge Castañon, Cristina Celis, Celeste Christie, Thea Clark, Kate Connell & Oscar Melara, Bruno Cuervo Aceves, Jessica Davies, Alberto Dávila, Clementine Edwards, Beate Eismann, Danielle Embry, Nicolas Estrada, Brenda Ligia Farias Lomeli, Sol Flores, Andrés Fonseca, Christine Forni, Monica Guerra, Elisa Gulminelli, Heidemarie Herb, Thomas Hill, Holland Houdek, Marta Hryc, Kevin Hughes, Mary Frisbee Johnson, Tammy Young Eun Kim, Barbara Knuth, Alejandra Koreck, Claire Lavendhomme, Lorena Lazard, Ria Lins, Criselda Lopez, María Eugenia López, Jorge Manilla, Alix Manon, Carmen Marcos Martínez, Gigi Mariani, Wendy Maruyama, Judy McCaig, Edward Lane McCartney, Emma Messer, Molly Mitchell, Katharina Moch, Nancy Moyer with Mark Clark, Dawn E. Nakanishi,Alja Neuner, Brigid O'Hanrahan, Mabel Pena, Chiara Pignotti, Ramón Puig Cuyàs, Kerianne Quick, Alexander Romero Reyes, Poleta Rodete, Jacqueline Roffe, Zinna Rudman, Elizabeth Rustrian, Carmen Lucia Sandoval, Chiara Scarpitti, Agnes Seebass, Marina Sheetikoff, Alejandra Solar, Maria Solórzano, Martacarmela Sotelo, Olga Starostina, Rachelle Thiewes, Demitra Thomloudis, Sabina Tiemroth, Julia Turner, Martha Vargas, Elizabeth Wilson, Jette Zirpins.

 

Links

MASARYK.TV . Entrevista a Lorena Lazard. La Frontera. Joyería contemporánea en Franz Mayer
[http://masaryk.tv/71171/la-frontera-joyeria-contemporanea-en-franz-mayer]

MUSEO FRANZ MAYER - ARTE Y DISEÑO. La Frontera. Exposição temporária 6 de Junho - 6 de Julho
[http://www.franzmayer.org.mx/index.php]

GALERIA VELVET DA VINCI - La Frontera. Exposição temporária 14 de Agosto - 15 de Setembro
[http://www.velvetdavinci.com/show.php?sid=160]

Imagens

EL PAIS. La frontera de México es un collar
[http://cultura.elpais.com/cultura/2013/06/22/actualidad/1371858022_238329.html]

 


 

[1]    TRÍAS, Eugenio, 1999, La razón fronteriza, Barcelona, Destino: 430.

[2]    DANTO, Arthur C., 2005, La distancia entre el arte y la vida, Madrid, Fundación ICO.

Ana Campos, Junho 2013

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